Nesta terça-feira (18/3), começará a sexta edição do Programa Na Moral. O projeto desenvolvido no Distrito Federal já inspirou ao menos dois guias da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) para elaboração de guias de políticas internacionais voltadas para o ensino.
Em seis anos de existência, o projeto do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) já formou mais de 25 mil alunos em iniciativas que visam educar jovens na construção de valores com gentileza, responsabilidade e honestidade.
“Queremos tratar da formação de pessoas para evitar violações de direitos e das leis”, resumiu a promotora de Justiça Luciana Asper, que é a idealizadora do Na Moral, ao Metrópoles Entrevista.
“Não conseguimos transformar outras pessoas, mas podemos capacitá-las ao autoconhecimento e ao desenvolvimento de virtudes. Precisamos de um espaço para experimentar valores positivos, para que a escolha por eles seja consciente”, explicou.
O programa funciona com uma lógica de gincana escolar, em que as iniciativas valem pontos para as turmas e os estudantes. O projeto atua ao longo do ano e conta com rodas de conversas e atividades extraclasse que despertem o aluno para uma noção de responsabilidade social.
“Tinha uma escola que os alunos não podiam deixar um lápis na mesa e descer para o intervalo que aquele objeto era furtado pelos colegas. As salas ficavam trancadas sempre e os alunos desciam para o intervalo com as mochilas. Em seis meses do projeto, a escola já tinha outra dinâmica, as salas ficavam abertas”, explicou. “Com o tempo a escola organizou achados e perdidos e as pessoas devolvem mochilas com dinheiro dentro”, detalhou.
Uma outra atividade é a ideia “Pegue e Pague”, em que a escola coloca doces para vender no colégio, sem câmeras, sem ninguém vigiando. A pessoa pega e paga pelo produto. A mesma iniciativa já aconteceu com outros alimentos ou produtos e estimula que o jovem a praticar a honestidade.
As iniciativas e os resultados do projeto serviram como inspiração para a elaboração de guias voltados à educação pela Unesco. Assim como o projeto do DF, iniciativas de diversos países foram usadas para construir exemplos de políticas públicas eficazes.
O guia “Capacitar estudantes para sociedades justas: um guia para professores da educação primária” pode ser acessado neste link, e o guia “Fortalecimento do estado de direito por meio da educação: um guia para formuladores de políticas” neste link. Ambos documentos estão disponíveis em versões em português, inglês, francês, espanhol, árabe, russo e chinês.
Além de inspirar guias internacionais, o projeto também já foi exportado para outras regiões do país. Em 2023, a iniciativa foi implementada no Rio de Janeiro em três escolas, sendo ampliada para 11 instituições públicas de ensino em regionais de ensino diferentes no ano seguinte. O projeto com o DNA brasiliense também está no Mato Grosso, São Paulo e Pernambuco.
Metrópoles Entrevista
Em entrevista, a promotora Luciana Asper detalhou o processo de criação do projeto, abordou a importância do impacto social do programa e destacou o papel transformador do projeto em comunidades vulneráveis.
Veja a entrevista na íntegra:
Leia a entrevista completa:
Repórter: Olá, estamos em mais um Metrópoles Entrevista e hoje estamos aqui com a promotora de Justiça Luciana Asper, uma das fundadoras do programa Na Moral. Bom dia, Luciana, tudo bem?
Luciana Asper: Bom dia, Jade! Obrigada por esse convite. Prazer estar aqui.
Repórter: Eu que agradeço a sua presença! É muito bom poder falar de um programa como esse. Para quem não conhece, ano passado tivemos uma formatura com 4000 alunos, mas não começou tão grande assim. Foi um processo pequeno. Poderia explicar o que é o projeto Na Moral e como ele começou? Qual a expectativa para este ano? Já estamos em março, o que temos daqui para frente?
Luciana Asper: Que legal! Tudo nasce de uma ideia, primeiro no coração e depois colocamos em prática. O Na Moral nasce no coração de pessoas que acreditaram na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que fala de nações fundadas na liberdade, na justiça e na paz, e que todos nascemos livres e iguais em direitos e dignidade. Ingressamos no Ministério Público buscando reconhecer direitos, mas percebemos que o sistema de justiça é, muitas vezes, um sistema de gestão das maldades humanas. E isso mostra que existem muitas violações de direitos. Nosso objetivo não é só reconhecer direitos, mas sim a fruição deles. Sociedades que usufruem de direitos têm cidadãos íntegros que cumprem seus deveres. Queremos tratar da formação de pessoas para evitar violações, conforme apontam diversos documentos sobre corrupção.
Repórter: Então, a ideia do programa é atuar na raiz da sociedade, com estudantes em formação, ensinando a seguir um papel…
Luciana Asper: Buscando essa essência humana, essa integridade. Não conseguimos transformar outras pessoas, mas podemos capacitá-las ao autoconhecimento e ao desenvolvimento de virtudes. Precisamos de um espaço para experimentar valores positivos, para que a escolha por eles seja consciente. Liberdade é renunciar ao que nos tira da nossa essência.
Repórter: Mas como funciona isso na prática no dia a dia dos estudantes?
Luciana Asper: O programa é anual e trabalha a parte cognitiva e socioemocional, como diz a Declaração Universal. Usamos rodas de conversa com materiais de apoio distribuídos nas escolas. A primeira etapa foca na integridade individual, buscando desenvolver gentileza, esperança, cidadania, coragem e outros valores. Queremos que o desenvolvimento desses valores seja prioritário na formação, mais do que o conhecimento técnico isolado.
Repórter: Entendi. E como vocês tocam os corações dos alunos nessa etapa?
Luciana Asper: Através do sócio emocional. Temos as rodas de conversa dinâmicas e as missões. Uma delas é a criação do “Herói da Integridade”, inspirado em pessoas reais que demonstram essas virtudes. Eles criam narrativas sobre esses heróis, trazendo o conceito teórico para o plano do coração.
Repórter: Então eles são obrigados a dar exemplos práticos?
Luciana Asper: Exatamente! Eles contam as histórias e muitas vezes cada turma cria um herói, com votações que simulam o processo eleitoral, ensinando sobre democracia também.
Repórter: Interessante! E depois da integridade individual?
Luciana Asper: Vamos para a integridade coletiva, que é necessariamente relacional. Buscamos relações ganha-ganha, quebrando a ideia da “esperteza” de passar por cima do outro. Nosso slogan é: “Esperto mesmo é ser honesto”. Discutimos como influenciar positivamente o coletivo através do exemplo. Uma missão prática é o “pegue e pague”, uma vendinha sem fiscalização para experimentar a confiança.
Repórter: E isso teve resultados surpreendentes nas escolas?
Luciana Asper: Sim! Escolas com histórico de desconfiança e até violência passaram a ter um ambiente de mais confiança e colaboração em poucos meses. Objetos perdidos eram devolvidos, mostrando uma mudança na cultura escolar.
Repórter: Quero falar da agressão que comentamos agora. Lembrei que, com a pandemia e o fechamento das escolas, o retorno foi marcado por muitos conflitos. Como o projeto atuou nesse período?
Luciana Asper: Foi um período desafiador. O Na Moral não pôde ser aplicado presencialmente. Criamos um e-book chamado “Conectando Talentos” como medida de emergência. A ideia era criar espaços para os alunos mapearem seus talentos e ensinarem uns aos outros, promovendo a autoestima e a conexão em um momento difícil.
Repórter: E qual o terceiro pilar do programa?
Luciana Asper: O terceiro pilar é a integridade social, que busca levar o ser humano à generosidade e à vida fraterna. Novamente, temos rodas de conversa e discussões, mas o foco são projetos práticos de impacto na comunidade. Temos o projeto “Um por todos e todos pelo bem comum”, onde os alunos se conectam com as dores da sua comunidade e realizam ações sociais em abrigos, asilos, no combate à dengue, e com moradores de rua.
Repórter: E essa experiência de ajudar o próximo transforma os alunos?
Luciana Asper: Absolutamente! Alunos que se viam como vulneráveis descobrem que têm muito a oferecer e experimentam uma alegria profunda ao fazer o bem. Precisamos levar as pessoas a experimentar o que é ser virtuoso para que busquem isso cada vez mais.
Repórter: O público inicial do Na Moral eram escolas vulneráveis. Isso mudou ao longo do tempo? Como uma criança que vive em contexto de violência e falta de alimento consegue levar algo para o outro? E como o programa lida com a questão da desigualdade, como um caso de racismo em uma escola particular?
Luciana Asper: O Na Moral é para todo ser humano, de todas as idades e contextos. Priorizamos a escola pública por sermos órgãos públicos, mas o programa está totalmente disponível para as escolas particulares também. A questão não é tirar o que não se tem, mas descobrir os talentos e habilidades que cada um possui e que podem ser usados para o bem. Eles se organizam, dividem tarefas e usam a criatividade para alcançar seus objetivos nas ações solidárias. Quanto à desigualdade, o programa busca criar um “ecossistema de virtudes e valores” em todas as escolas, oferecendo a oportunidade de escolha entre diferentes referenciais.
Repórter: O Na Moral surgiu de outro exemplo ou está sendo um espelho para outros lugares? Qual a repercussão disso?
Luciana Asper: Sempre tivemos referências. O Na Moral nasceu de outras tentativas como o “O que você tem a ver com a corrupção” e “Cidadão contra Corrupção”. O que fizemos foi compilar essas experiências em uma tecnologia social gameficada para engajar os jovens. Já em 2018, a UNESCO nos convidou para participar da construção de guias de política pública para fortalecer a cultura da legalidade. Temos conexões com a UNESCO, ONU e OCDE, e participamos de eventos para compartilhar nossa experiência. Existe uma rede nacional de educação para a cidadania com trabalhos lindos, e estamos buscando a universalização do Na Moral em escolas públicas, particulares e universidades.
Repórter: Qual a meta do programa Na Moral? E quais as considerações finais da nossa entrevista? O que gostaria de acrescentar e quais são os próximos passos?
Luciana Asper: A meta principal é fortalecer o Na Moral como política pública. O governador enviou um pedido de urgência para a Câmara Distrital para instituir o Programa Distrital de Educação para a Integridade. Queremos que as escolas adiram por entenderem a importância e a prioridade da formação integral dos seus alunos. Vamos continuar aumentando o número de escolas participantes e buscando parcerias com universidades e escolas particulares. O Na Moral é uma tecnologia social replicável, desenvolvida em parceria com a Secretaria de Educação do DF e com o grande mérito dos professores. Já estamos presentes em outros estados como Rio de Janeiro, Pernambuco, Mato Grosso e São Paulo. Nosso objetivo é que ele perdure para sempre, fomentando a cultura da integridade em todos os ambientes.
Repórter: Muito obrigada, viu, doutora, por falar conosco aqui. A gente segue para o próximo Metrópoles Entrevista. Obrigado a você pela sua audiência e companhia nessa entrevista.